A independência do poder político e a autonomia no serviço à sociedade são duas funções importantes das ordens profissionais. As proposta do PS visam apenas reforçar o poder do Estado
O ataque que está a ocorrer às ordens profissionais não se deve a preocupações com o acesso às profissões nem ao falhanço da reforma da “troika”, e muito menos a pressão da Comissão Europeia, como algumas almas ingénuas (e outras interesseiras) andam a divulgar. Visa apenar reforçar o estado e destruir mais um nicho de liberdade que resiste à asfixia que os tentáculos socialistas estenderam por toda a sociedade.
A semana passada não pude abordar este tema por causa do Orçamento de Estado, mas agora que já se descobriram todas as “carecas” do documento posso voltar para uma questão que é duplamente simbólica: as ordens profissionais são reguladores independentes do funcionamento de actividades fundamentais para as nossas vidas, como a medicina, a engenharia, a advocacia, a arquitetura ou outras áreas (declaração de interesses: sou Economista e não faço parte de qualquer ordem), e são um sinal de autonomia da sociedade para se organizar separadamente do Estado.
Primeira função importante: independência face ao poder político
A primeira função é a independência com que as Ordens exercem a regulação das respectivas profissões. Por regulação entende-se lidar, em prol da sociedade, com questões deontológicas e com a qualidade do serviço prestados pelos profissionais, tendo o poder de sancionar as irregularidades por eles cometidas.
A reforma feita no tempo da “troika” visou lidar com a regulação no que se refere a eventuais barreiras à entrada de novos profissionais, mas não procurou retirar a autonomia das ordens pelo papel muito importante que desempenham no funcionamento de uma sociedade verdadeiramente livre.
Por isso, a questão relevante nessa reforma não foi a autonomia das ordens profissionais, mas se a sua actuação impedia o rejuvenescimento dos profissionais que actuam no mercado, beneficiando sistematicamente os que já exercem a profissão e nele estão instalados. A reforma visou responder a preocupações que a OCDE manifesta a este respeito já há mais de 10 anos e que depois foram transpostas para as recomendações da Comissão Europeia.
As ordens negaram e negam que haja algum problema, como se esperaria de um grupo de interesse. Perante isto torna-se importante perceber o porquê da nova proposta legislativa apresentada pelo PS, designadamente quais foram os novos problemas identificados? E o que é que propõem para os resolver?
Infelizmente, a realidade parece ser bastante mais simples do que uma resposta a estas perguntas, Não se pode falar verdadeiramente em novos problemas, no plural, mas apenas em um problema. E o problema é que os proponentes da nova legislação não fizeram qualquer diagnóstico sério e por isso não identificaram nenhumas questões a resolver que não tivessem já sido abordadas pela OCDE e pela Autoridade da Concorrência.
O Projecto de Lei nº 974 do PS apresenta quatro diferentes objectivos mas não dá respostas satisfatórias a nenhum deles.
- O primeiro é reforçar os órgãos de supervisão e, supostamente, garantir a sua independência. Note-se que se refere à supervisão do funcionamento interno das Ordens e não à supervisão dos mercados, porque essa deve caber à Autoridade da Concorrência. A resposta do PS para garantir a independência é criar mais tachos para “boys” e aumentar a dependência do estado: cria o “provedor dos destinatários de serviços” que tem lugar cativo no novo órgão de supervisão (que já existia mas é separado da função disciplinar) e é proposto pela DG de Defesa do Consumidor: Introduz o que chama de “personalidades de reconhecido mérito” que não sejam membros das ordens e que não se sabe se são voluntários ou quem é que os vai pagar.
- O segundo objectivo é reforçar os poderes de fiscalização das ordens e outras associações. A proposta sugere mais dependência do estado através de protocolos com as entidades de inspecção públicas, que estão dependentes do poder político (como se observa na questão da velocidade a que ia o “carro do Cabrita”).
- O terceiro é facilitar os processos de acesso à profissão (estágios, exames, etc.) e o PS propõe que seja obrigatório haver pelo menos um período de inscrição na ordem por ano, não se percebendo porque é que o período de inscrição não está permanentemente aberto e porque é que o PS não o propõe. Para além disso, a proposta reduz o nível de exigência técnica necessária para aceder à profissão (certamente em resultado de ouvir a JS disfarçada de associação de estudantes), indo assim contra o interesse da sociedade em ter profissionais mais capazes, e obriga a que haja sempre um júri composto por pessoas externas a cada Ordem, não se percebendo se são voluntários “à força” ou se quem os paga é o candidato (se for a Ordem a pagar, eles só não perdem a independência se o governo estipular o pagamento, mas assim teríamos mais uma intromissão do estado e maior dependência do poder político).
- O quarto é um objectivo ilusório porque vem afirmar o que já existe na prática e já estava previsto na lei, que as sociedades profissionais, sejam uni ou multidimensionais, podem ser detidas por pessoas com outras profissões (basta pensar na saúde privada ou nas farmácias).
As propostas do PS vêm, na prática, trazer três coisas: Criar dependência do estado e dificultar a criação de associações públicas profissionais, fazendo a sua aprovação estar dependente não da vontade da sociedade, mas do poder político; Criar burocracia e cargos para distribuir através do estado; E impor privilégios ao sexo feminino em nome do fundamentalismo igualitário que o próprio governo não cumpre na sua composição (o mesmo se passa agora nos executivos das Juntas de Freguesia após um parecer favorável ao fundamentalismo patrocinado pela respectiva associação, ou seja, pelo PS).
A proposta de legislação não se baseia em qualquer esforço para identificar novos problemas e para apresentar soluções. Neste sentido conclui-se de imediato que o objectivo é meramente político e não visa beneficiar a sociedade, mas um grupo de interesse, os socialistas.
Estamos perante a velha tática socialista de utilizar os argumentos do capitalismo quando isso dá jeito para levar avante as suas intenções. O raciocínio é simples de expor, mas fundamentalmente errado na sua aplicação simplista à situação das ordens profissionais.
As barreiras que as ordens colocam a que novas pessoas possam exercer as respectivas profissões, através de exames, estágios e outros requerimentos, resultariam numa protecção da concorrência potencial (a contestabilidade dos mercados, na gíria económica) que beneficiaria os actuais profissionais. No entanto, o PS não apresenta qualquer evidência deste facto. Mais, no caso da saúde, por exemplo, não se percebe como é que isso pode acontecer uma vez que é o estado que limita o número de alunos e os cursos de medicina e de enfermagem, como o demonstra o rocambolesco processo de aprovação do curso proposto pela Universidade Católica. As ordens profissionais não têm qualquer intervenção nesta questão, nem na definição das vagas ou dos salários que os profissionais recebem do estado.
A falta de médicos e de enfermeiros, que é real, deve-se exclusivamente às decisões dos mesmos socialistas para proteger os empregos existentes. Ou seja, são os próprios socialistas que estão a prejudicar o funcionamento do mercado e a provocar o mesmo mal que apontam às ordens, prejudicando todos os que pretendem entrar nas carreiras. A solução para muitos é ir para o sector privado ou para fora, onde são mais bem pagos e mais bem tratados. Veja-se o caso dos enfermeiros que emigram para o Reino Unido, por exemplo, apesar da propaganda à volta do Brexit. O mesmo se passa em outras actividades, especialmente em áreas de engenharia onde a falta de profissionais é cada vez mais gravosa, como as empresas bem sabem.
Não há aqui um problema de concorrência nem de falha de mercado, para usar a linguagem económica, mas sim uma falha de governo. E essa falha de governo é da responsabilidade dos mesmos socialistas que estão agora a atacar as ordens profissionais em vez de estarem a resolver o problema da falta de médicos, de enfermeiros ou de engenheiros.
Como não fizeram qualquer diagnóstico da situação e como o problema é causado principalmente pela sua actuação incompetente, os socialistas recorrem aos argumentos da Comissão Europeia (CE) para o tentar disfarçar. Mas a CE funciona como uma estrutura burocrática que ambiciona concentrar poder, e para ter poder sobre estas questões prefere ter que controlar apenas uma entidade, o estado português, em vez de ter de lidar com um poder disseminado por várias ordens profissionais. Por isso há anos que recomenda a alteração das leis que enquadram o funcionamento das ordens profissionais. Realce-se, contudo, que a CE nunca afirmou explicitamente querer retirar a autonomia às ordens. Mas se isso acontecer, tanto melhor, pois será mais fácil transferir o poder para Bruxelas, o objectivo último da sua actuação.
Acresce que as recomendações da CE são para “inglês ver”. Um estudo do Parlamento da UE de 2018 mostra que das 162 recomendações feitas pela CE aos países apenas 3 tiverem uma implementação substancial. Percebe-se porquê. Primeiro, porque são recomendações e não obrigações. Segundo, porque a Comissão Europeia não tem qualquer legitimidade para as impor perante governos democraticamente eleitos.
Segunda função importante: Autonomia no serviço à sociedade
A segunda função importante é que as ordens profissionais são entidades representativas de um grupo e velam autonomamente pelos interesses desse grupo. Ao actuarem como grupo de interesse, são como os sindicatos ou os partidos políticos. E é nesse âmbito de autonomia que as ordens servem a sociedade, actuando de uma forma que dispensa o estado. Não há nada mais saudável para o funcionamento de uma sociedade livre e democrática do que a separação de poderes, e esta é também uma forma de limitar o poder do estado, uma vez que as ordens estão nas mãos de elementos da sociedade civil e fora do controlo dos burocratas e dos políticos eleitos.
Ou seja, as ordens representam interesses da sociedade e não os interesses do estado, que está separado da sociedade e deve existir para a servir. E este é o problema. É esta autonomia que dispensa o estado, ou mais exactamente a sua destruição, que motiva o Partido Socialista no ataque que está a fazer às ordens profissionais.
As ordens são um nicho de liberdade ao resistirem às tentativas de controlo colectivista por parte de socialistas e de sindicatos. Demonstraram-no recentemente em diversas ocasiões, como na denúncia do escândalo que foi a tentativa dos autarcas socialistas em serem vacinados para o Covid-19 antes das pessoas idosas e vulneráveis à doença. Ou o escândalo ainda maior que foi o número de idosos que morreram em Reguengos de Monsaraz por incompetência do estado, como o Bastonários dos Médicos aqui recorda.
É esta recusa em deixar-se subjugar pelo estado e pelo poder político, e é o papel que assumiram recentemente de critica certeira à incompetência governativa, de certa forma ocupando o lugar de sindicatos que se calaram perante as “ofertas” que receberam do governo, que ordens como a dos Médicos, dos Enfermeiros, dos Engenheiros e outras servem a sociedade portuguesa e são extremamente importantes para que ela seja livre.
Ao negarem o argumento demagógico da “vontade geral” socialista, em que o colectivo impõe a sua vontade independentemente de qual seja a preferência das pessoas livres, estão a prestar um serviço à sociedade.
Mas isso vai contra a essência do socialismo, que é por natureza, nunca nos esqueçamos, antidemocrático e ambiciona dominar a sociedade. E esta é a verdadeira razão da proposta de lei apresentada pelos socialistas.P. S. As declarações do Primeiro-Ministro esta semana no Parlamento dão a entender que outro ataque se prepara, desta feita às autoridades de concorrência. Costa está desesperado por causa do orçamento, mas isso não justifica tamanha irresponsabilidade.
Ricardo Pinheiro Alves, in ECO.pt